Joana Santos, 32 anos, jura que nunca esquecerá, “nem que viva 100 mil anos”, a primeira frase que ouviu quando foi contratada para o primeiro emprego. “A pessoa dos Recursos Humanos disse-me: ‘A Joana conseguiu o lugar porque tem o mentalidade que procuramos, as habilidades certas para o lugar e temos a certeza que com os seus entradas vai ajudar-nos a atingir os nossos objectivos’.”
Embora já dominasse bem o inglês, até porque tinha sido um idioma que a acompanhara na sua formação universitária em economia, Joana ficou chocada com tanto inglesismo. “Não sei se é por ser filha de uma professora de português ou se foi porque achei completamente desnecessário puxar desta forma por chavões em inglês que parecem ter retirado ainda mais significado àquela frase, ao ponto de eu esquecer por momentos a felicidade que era conseguir o meu primeiro emprego”, recorda-me à mesa da pastelaria.
(Já que estamos numa de inglês, curiosidade sobre o meu encontro com a Joana: foi agendado para as cinco da tarde e ela bebeu chá preto.)
O linguajar empresarial sempre teve as suas “muletas” e regras próprias e certamente que partilha essa especificidade com o “futebolês”, com o “juridiquês” ou o “politiquês”. Mas distingue-se de outras áreas da vida cultural, social ou política pela predominância do inglês, que tomou de assalto a vida empresarial, empurrando a língua portuguesa para um canto de inutilidade.
Antes que me chamem reaccionário e conservador, alerto: esta boletim informativo não é um manifesto contra os orçamentos (orçamentos), os reuniões (reuniões), as chamadas (chamadas), os avaliações (avaliações). Este arranque só serve como salão de entrada para o chamado besteira corporativa (viram o que acabei de fazer?).
Em português, proponho mergulharmos na conversa da treta empresarial, que é como traduziríamos o besteira corporativa. Não é uma questão menor. Decifrar a linguagem é perceber o mundo. “Não tem a palavra quem quer, tem a palavra quem pode”, é uma frase que ecoa muitas vezes nos meus ouvidos, desde as aulas, já longínquas, de Semiótica de Moisés Martins no curso de Ciências de Comunicação da Universidade do Minho.
Se fosse um tema de pura lã de cabranão haveria livros como Besteira Corporativa – Expondo as Mentiras e Meias Verdades que Protegem o Lucro, o Poder e a Riqueza na Américaeditado há precisamente um ano. Nele se coleccionam 150 anos de citações provenientes da política social e do mundo económico dos EUA para mostrar como o controlo do colectivo passa inevitavelmente pelo domínio da língua, de como se fala, do que se diz.
Mas besteira corporativa não é substituir palavras portuguesas por inglesas – esta prática é, quando muito, sintoma de queda para a conversa da treta empresarial, que está mais próxima da perigosa propaganda, da mentira.
Num artigo académico divulgado recentemente, em Agosto, Shane Littrell, da Universidade de Toronto, no Canadá, define esta “retórica vazia do ponto de vista semântico, que se apropria de chavões abstrusos do mundo empresarial e de jargão, de tal forma que acaba por deturpar ou esconder alguns aspectos da realidade organizacional”.
“Embora por vezes pareça inofensiva, esta conversa pode afectar negativamente quer a organização quer o rendimento dos trabalhadores, desde logo por obstruir uma comunicação efectiva, aumentar o afastamento dos trabalhadores, manchar a reputação da empresa e até expô-la a riscos legais e financeiros.
Littrell está num pós-doutoramento na Escola de Assuntos Globais e Política Pública da Universidade de Toronto, sendo doutorando em Psicologia Cognitiva pela Universidade de Waterloo, no Canadá. O documento de trabalho (desculpem) que divulgou em pleno Verão ainda carece de peer review (preferem revisão por pares?) começa com uma citação que é atribuída a George Bernard Shaw – mas não há qualquer prova conclusiva de que seja dele.
A frase é esta: “O maior problema na comunicação é a ilusão de que ela foi conseguida.”
É um detalhe com graça. A crença generalizada de se tratar de uma frase de Shaw é “provavelmente conversa da treta, tal como muitas outras coisas que se encontram na Internet”, aponta Littrell na primeira nota de rodapé que redigiu para este trabalho analítico e reflexivo, e que direccionou para um assunto que, segundo o próprio, se tornou “tópico de rigoroso questionamento científico”, sobretudo nos campos da investigação das ciências sociais e comportamentais.
Diferentes estudos feitos nos últimos 20 anos centraram-se em dois pontos-chave: a tendência para produzir conversa da treta (definida conceptualmente como a frequência do besteira) ; e a tendência para cair nessa conversa (receptividade ao besteira).
Resumindo este corpo teórico, treta é todo o discurso obscuro e impossível de clarificar, representado por informação dúbia cuja intenção é a de deturpar para impressionar, persuadir ou envolver.
Acontece que o ambiente de trabalho é “terreno fértil para situações que encorajam e facilitam a conversa da treta”. E é por isso que não se pode desligar a adopção generalizada das expressões e palavras inglesas nas empresas, como se esse idioma fosse a língua franca e única forma de nos fazermos entender. Porquê? Porque “a conversa da treta mimetiza, da forma mais próxima possível, o discurso empresarial autêntico”, para esconder a sua falta de autenticidade.
As quase 50 páginas do trabalho de Littrell estão disponíveis online (sim, em inglês, aqui num formato pdf). E sem a pretensão de aprofundar, destaco aquilo que é relevante para gestores, chefes, trabalhadores em geral: quanto maior receptividade à conversa da treta, menor é o pensamento analítico dentro de uma organização. Nesse sentido, a tendência para produzir ou deixar-se ir na conversa da treta está negativamente correlacionada com o desempenho individual e colectivo: quanto mais treta, pior o resultado, porque a tentativa de persuadir se sobrepõe à necessidade de raciocinar.
Num trabalho recheado de exemplos, mas que tem as limitações reconhecidas pelo próprio autor (uma delas, o “centrismo” da cultura ocidental), Littrell conclui: “(…) fica claro que os efeitos do besteira corporativa sobre o sucesso de empregados e organizações pode variar entre algo benigno ou ruinoso do ponto de vista operacional, reputacional e económico.”
O cientista elabora uma “escala de receptividade da conversa da treta” e termina com a sugestão de que este trabalho pode vir a ser usado em processos de recrutamento. Portanto, para quem vai em breve a uma entrevista de emprego, isto traduz-se no seguinte cenário, ou melhor, no seguinte aviso: não demonstre grande receptividade à conversa da treta empresarial e aos chavões, se o lugar a que se candidata requer pensamento crítico e capacidade de análise. Se o recrutador estiver por dentro dos estudos recentes nestas áreas, é pouco provável que se mostre entusiasmado com os muitos textos no seu LinkedIn enxameados com chavões. A não ser que a empresa e o lugar que tem em vista prefira empregados receptivos à conversa da treta. E nesse caso o problema não desaparece – muito pelo contrário: pergunte-se se quer mesmo trabalhar num ambiente assim.
Quanto à Joana Santos, ficou sete meses no seu primeiro emprego. “Fartei-me rapidamente daquele ambiente de trabalho em que tudo parecia postiço, e não apenas a forma como as pessoas falavam nas reuniões”, conta-me. Hoje trabalha numa escola privada que manda para sessões de terapia da fala toda e qualquer criança que fale com sotaque brasileiro por estar muito exposta a vídeos em português do Brasil no YouTube (mas isso talvez seja tema de outras boletins informativos).
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