O presidente do conselho superior do Grupo Espírito Santo, António Ricciardi, deixou claro em depoimento prestado em outubro de 2015 ao Ministério Público e reproduzido nesta quinta-feira no Juízo Central Criminal de Lisboa no terceiro dia do julgamento do processo sobre o colapso do império familiarque assinava documentos sem ler. Não disse expressamente, mas ficou subentendido, já que garantiu desconhecer diversos fatos que constavam em documentos assinados por ele, com os quais foi confrontado e cuja assinatura confirmou.

Ao longo de uma hora e meia de declarações a uma equipe liderada pelo promotor José Ranito, foram muitas as vezes que Antonio Ricciardi, então com 96 anos, disse não saber esclarecer as dúvidas que o Ministério Público lhe fazia. Foi assim, por exemplo, com a atividade de diversas empresas do grupo, como a da Espírito Santo Resources ou a ES Enterprises, considerada o saco azul do grupo, que teria sido usada para pagar luvas – transferências essas que António Ricciardi ordenou e assinou, pelo menos em parte.

Sem saber explicar bem o que era a Gespar, que disse conhecer, ao contrário de outras empresas que faziam parte do labirinto de sociedades do grupo, levou com um esclarecimento de José Ranito: “Era uma sociedade que administrava fortunas, inclusive as suas.”

Outras vezes, o “comandante Ricciardi”, como era conhecido, disse não se lembrar do que o Ministério Público queria saber. Mas não teve dúvidas em apontar Ricardo Salgado como o líder absoluto do grupo e “o único” que conhecia tudo o que se passava tanto na área financeira como na área não financeira. “Ricardo Salgado é que controlava a gestão do grupo”, afirmou Ricciardi, que aparece no vídeo do depoimento sentado ao lado do seu advogado, João Nabais.

Afirmou ainda que a maior parte dos assuntos não eram discutidos internamento no grupo, mesmo no conselho superior onde estavam representados os cinco ramos da família, sendo as decisões tomadas por Ricardo Salgado, que tratava com pessoas da sua confiança a respectiva concretização, cabendo a António Ricciardi apenas assine. Para tanto, contou, ia diariamente a umas instalações na Rua de S. Bernardo, para despachar o expediente. Muitas vezes era o antigo controlador financeiro do grupo, José Castella – um dos principais réus do caso, que morreu em março de 2020, alguns meses antes de ser proferida a denúncia deste processo – que levava os documentos para assinar.

Sobre o buraco de mais de mil milhões de euros nas contas de uma contenção de topo do grupo, a Espírito Santo Internacional (ESI), António Ricciardi garantiu que só ficou a conhecer a sua existência em Novembro de 2013, uns meses antes do colapso do banco da família, em Agosto de 2014. Isto aconteceu numa reunião do conselho superior em que Ricardo Salgado assumiu a existência de erro nas contas, tendo sido decidida uma reestruturação da parte não financeira do grupo.

Ele se lembrou de uma discussão ocorrida na Comporta, antes, em que um dos membros da família defendeu que se deve acabar com os negócios não financeiros do grupo, uma vez que havia problemas na sua rentabilidade. “Ricardo Salgado defendeu de forma acérrima a continuidade da parte financeira”, conta.

No interrogatório, António Ricciardi (que morreu em 2022, aos 102 anos) revelou que o contador do GES, Francisco Machado da Cruz, lhe confidenciou que havia recebido indicações de Salgado para manipular as contas a partir de 2008. José Ranito questionou António Ricciardi sobre se alguma vez o homem forte do grupo tivesse dito que manipulava as contas, e o comandante respondeu que não. No entanto, o magistrado do Ministério Público insistiu se haveria essa intenção, e o ex-presidente do conselho superior do GES afirmou que, “garantido, havia uma intenção”.

O ex-presidente do conselho superior do Grupo Espírito Santo (GES) argumentou que até 2013 manteve uma “confiança absoluta” em Salgado.

Já no fim do depoimento, José Ranito confrontou Ricciardi com um documento de Abril de 2014 que dava conta dos honorários milionários que iriam ser pagos aos vários ramos da família, representados no conselho superior, numa altura em que já era conhecido o enorme buraco das contas da ESI. “Isto aconteceu una meses antes da resolução do banco”, fazia notar o procurador. Ricciardi admitiu que não havia relação entre a situação do grupo, nomeadamente os resultados financeiros, e os honorários pagos.