Não, este não é um texto sobre o anúncio recente do passe ferroviário nacional. Nem sobre os atrasos na eletrificação da linha do Douro ou na aquisição de material circulante; nem sobre o encerramento da Estação Central em Coimbra ou a incapacidade de reter trabalhadores qualificados na ferrovia. É sobre tudo isso e mais. Liberdade para nos movermos sem barreiras nem dependências, num país por inteiro, num planeta habitável – são sobre isso estas linhas.

Poucos assuntos da política nacional haverá em que os principais vetores da nossa vida em comum se cruzem como na mobilidade. Transição ecológica, bem-estar social, coesão territorial, emprego com direitos. É disso que falamos quando falamos de mobilidade. Se quisermos falar a sério, claro.

Um terço das emissões de gases com efeito de estufano nosso país, tem origem nos transportes e, destes, a imensa maioria provém da rodovia – sobretudo do automóvel individual, mas também do transporte de mercadorias e, menos, de passageiros. Não vale a pena falarmos de combate à seca, aos incêndios ou da proteção da saúde coletiva sem abordar como cortar emissões: e a fatia dos transportes é a maior.

Trata-se do futuro do planeta, mas também do presente das nossas vidas. Temos um país desenhado à medida do automóvel individual. Essa dependência calculada pesa sobre a vida de milhões. Segundo o Car Cost Index, da Lease Plan, o custo médio mensal de ter um carro em Portugal (crédito, combustível, manutenção, impostos, etc.) é de 1160 €/mês. Ainda assim, somos dos países onde mais carros há por habitante: a falta de transportes públicos ata milhões de pessoas a este fardo.

As camadas da população que não podem suportar tal peso, veem-se muitas vezes marginalizadas, tolhidas no direito à mobilidade. O movimento Vida Justa tem divulgado entrevistas tocantes a trabalhadoras da periferia de Lisboa que relatam o inferno que é depender da frágil rede de transportes, quando se levantam de madrugada para chegar ao centro da capital, e fazê-la funcionar com o seu trabalho.

Conclusão: libertar o país da ditadura do automóvel é a única forma de, rapidamente, cortar emissões e melhorar a qualidade de vida e rendimento disponível de milhares de pessoas. Os automóveis necessários devem ser elétricos. Mas a alteração de paradigma, da mobilidade individual para a coletiva, é a única solução. O lóbi do automóvel não vai gostar e políticas públicas para que os empregos no setor (nas oficinas e na indústria, por exemplo) transitem para este novo modelo serão essenciais. Mas é o único caminho. Pelo direito à mobilidade, por mais rendimento disponível, por um planeta para habitar.

Ora, a solução está do lado da oferta. Ao contrário do que dizem dogmas vários, é esta que faz a procura. Havendo uma rede de transportes públicos fiável, regular, que una as escalas urbana, regional, inter-regional e nacional; cujos horários e regularidade abranjam as necessidades reais da maioria da população, as pessoas vão preferi-la ao automóvel. Para tal, será necessário que os tempos de deslocação sejam comparáveis aos conseguidos de carro.

A política de preços é importante. O objetivo deve ser o de alcançar a gratuitidade dos transportes. E, no imediato, há que reduzir ao máximo o seu peso nos orçamentos familiares. Contudo, sem uma rede de transportes fiável e flexível, o preço de nada serve. De que me serve que seja gratuito um autocarro cujos horários não me permitem chegar ao trabalho a horas ou deixar o filho na creche? Uma política de preços que não invista na oferta continua a alimentar a ditadura do automóvel. O Passe Ferroviário Nacional anunciado pelo governo não resolve este problema, além de, se não for acompanhado das devidas compensações, pode perigar a sustentabilidade Sim CP.

Para compatibilizar este caminho com o corte de emissões – para cumprir as metas com que Portugal se comprometeu e, sobretudo, para mitigar a crise climática –, um esforço enorme de eletrificação dos transportes públicos deve ser posto em prática. Terminar de eletrificar o conjunto da ferrovia e avançar para o transporte de pessoas e mercadorias é essencial. Além da criação de postos de trabalho que o crescimento da oferta de transportes implica, este plano de eletrificação será outro vetor de criação de empregos para o clima.

Assim, será possível, junto com as organizações de trabalhadores, operar uma transição justa que garanta que a contração da indústria automóvel e o fim das indústrias fósseis não signifiquem perda de trabalho e de direitos para ninguém. O primeiro passo é valorizar quem já hoje trabalha nos transportes, garantindo as condições dignas e as carreiras justas por que têm lutado – condição para que, como na saúde e na educação, se possam atrair profissionais qualificados, à altura dos desafios do setor.

Como se vê, não há uma medida, ou mesmo um “pacote” feito à medida de pontos de poder que resolva o problema. Trata-se de um desígnio nacional, uma mudança estrutural a fazer rapidamente, apenas comparável com o que foi a implementação do SNS ou a expansão da Escola Pública, após a Revolução de Abril. Uma combinação de política nacional, investimento público e mobilização cidadã. Os dogmáticos terão de aceitar que o mercado não consegue promover um salto desta magnitude.

Nada indica que a política do atual governo vá nesta direção, como não foi a do governo anterior – independentemente das avaliações que façamos de medidas pontuais de um e de outro. Idealmente, o estímulo para esta revolução na mobilidade nasceria do Governo, a quem caberia mobilizar a sociedade.

Contudo, parece mais plausível que se dê o contrário. Ecologistas, trabalhadores dos transportes, utilizadores dos mesmos, ativistas pela justiça climática e população em geral podem juntar-se nesse sentido e há já iniciativas a abrir caminho. Lançada há poucos meses, a iniciativa Todos a Bordo! propõe-se a juntar essas forças e lançou recentemente uma petição pública que, indo além de medidas pontuais e avulsas, reclama uma transformação profunda na política de mobilidade. Pelo direito a movermo-nos livremente num planeta com futuro, esta é uma luta a fazer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico